Instrumentos de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos: internacionais, regionais e nacionais

 Dos Direitos Humanos

LIBERDADE E DIGNIDADE



Instrumentos de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos: internacionais, regionais e nacionais 



Dr. Bruno Miguel Salgueiro Calçôa 



O tráfico de seres humanos é um assunto que me sensibiliza muito, pela violência física e psicológica exercida sobre as vítimas, pela conduta desprezível daqueles que praticam um crime tão hediondo com efeitos nefastos na essência do ser humano em si, afetando profundamente os seus mais basilares e supremos valores da dignidade, a honra, a liberdade. Em 2020 efetuei um estudo profundo o suficiente, para entender a complexidade de uma operação de investigação criminal, como a “Operação Espelho”, desencadeada pela Polícia Judiciária em 21 de novembro de 2023 – a que dirijo as minhas congratulações pelo êxito desta operação –  através da sua Unidade Nacional Contra Terrorismo bem como o Ministério Público pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Évora (DIAP), que serviu de inspiração e motivação para escrever o primeiro artigo elaborado enquanto jurista. Mas não só.

Temos constatado diversos formatos de aproveitamento que o tráfico de seres humanos, que se não for devidamente controlado, reverte, como se constata da história da humanidade na coisificação do ser humano, a escravatura no seu termo mais horrendo. Cumpre assim, abordar e conscientizar para que possa ser mitigado e, talvez um dia, erradicado.

Este assunto, leva-me a expor a face pratica na missão de erradicação deste flagelo de uma forma clara para o leitor no geral para bom entendimento do público em geral.


O tráfico de seres humano, como vimos, mais não é que a escravatura de outrora (a coisificação do ser humano, um ser vivo desprovido de princípios, quanto mais de direitos), operante na atualidade nos seus diversos domínios. Sensibiliza-me o elevado grau de violência física e, sobretudo, psicológica a que as pessoas, em especial as crianças estão sujeitas, o despeito pela dignidade humana perpetrada por outrem. 

Decidi, completar e publicar uma investigação levada a cabo por mim em 2020 durante o curso de Direito na Universidade Autónoma de Lisboa, na cadeira Direito Internacional dos Direitos Humanos assinalando, deste modo o meu contributo nas comemorações do 75º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e também por já estarmos em comemoração dos 50 anos de democracia e liberdade na sociedade portuguesa 

De um modo geral, podemos afirmar que a implementação de uma consciência ou de uma consideração generalizada por parte dos Estados, muito já se foi feito, porém muito mais ainda está ainda por fazer, no que respeita à problemática do tráfico de seres humanos. Deste modo, apresentamos de uma forma geral os instrumentos que visam fazer face a este crime em contexto internacional, regional e nacional. 

No contexto, internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que nasce de uma vontade de entre os povos, visando pôr termo das atrocidades cometidas, que “revoltam a consciência da Humanidade”, com o devido destaque ao objeto da nossa investigação, o fenómeno da escravidão e subsequente tráfico (des)humano . Muitas ações estão já implementadas e colocadas em prática, contudo, tem-se registado ao longo dos anos um aumento acentuado nos casos de tráfico de seres humanos, que exige dos Estados maior diligência, sobretudo, no que toca à partilha de informação entre os Estados, uma ferramenta relevante na monitorização de agentes (traficantes) e de vítimas. Tomamos em atenção as questões de ordem política, económica, social e cultural, muitas vezes traçam justificações dos motivos deste flagelo.

No contexto regional, o Conselho da Europa e a União Europeia fundadas nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano numa Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, com matriz de Tratado, que contempla diversos preceitos sobre o tráfico de seres humanos. Esta conceção emanada para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

No contexto nacional, veremos que Portugal consagra no seu ordenamento jurídico através da Constituição, nos termos do artigo 8º, o referido nos Diplomas acima mencionados. No que aos Direitos Humanos em traço geral respeita, a Constituição da República Portuguesa estabelece “...baseada na dignidade da pessoa humana ”, o tráfico de seres humanos em traço particular ao referir os direitos, liberdades e garantias. 

O combate e prevenção do flagelo do tráfico de seres humanos, o Direito Penal tipifica um elenco de crimes contra a liberdade pessoal já como ultima ratio merece a nosso apreciação por se tratar de um instrumento –  de última linha –, de restabelecimento da ordem pública. A jusante da pesquisa realizada em 2020, atualizamos e trazemos ao leitor os aspetos importantes face ao crime de tráfico de seres humanos, qualificado como crime organizado e violento de cabal importância para no âmbito do processo penal, desde os procedimentos a adotar medidas cautelares de polícia e na obtenção de prova que merece a atenção do leitor, pela elevada complexidade na prossecução de operações policiais desta natureza.

Visamos uma leitura para o público em geral, sob uma ótica de instrumentos não só de matriz jurídica, mas também uma alusão aos mecanismos de natureza operacional no que tange aos órgãos de polícia criminal no âmbito internacional, regional e nacional e a constatação de números que ilustram bem a emergência do flagelo do tráfico de seres humanos e, consequente “escravatura”. 



Instrumentos internacionais


Do Direito Internacional dos Direitos Humanos


A Declaração Universal dos Direitos Humanos (doravante DUDH) é o primeiro passo relevante nesta matéria, desde logo, por estar na génese da tomada de consciência ao nível global e fomenta uma nova mentalidade de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos (doravante TSH), por via da Organização das Nações Unidas. Consagra um elenco de disposições, reconhecendo, primeiramente o direito fundamental “à vida e à liberdade” no artigo 3º, já o artigo seguinte proíbe diretamente para o flagelo do TSH “ninguém será mantido em escravatura ou em servidão (...) sob todas as formas” . Não é, todavia, suficiente para o respeito efetivo das Partes, em 1948, na Conferência Internacional Americana é aprovada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem ; o Pacto de São José assinado em 1969, assente na Convenção de Americana sobre Direitos Humanos que viria entrar em vigor apenas em 1978. Por último, mas não menos importante é o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos .



Do Pacto de San José


Os diplomas referidos acima dispõem, contributos importantes para o flagelo do TSH, no contexto do Direito Internacional. Numa perspetiva kelseniana, a DUDH  o artigo 4º consagra a proibição, como acima referimos: Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos. 

O Pacto de San José, vem também proibir o esclavagismo no seu artigo 6º logo na sua epígrafe: Prohibicíon de la Esclavitud y Servidumbre .


Do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos


O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos direciona no seu artigo 8º clarifica ainda mais o conceito e mais que o ato de submeter outro indivíduo a trabalho forçado e/ou obrigatório, vai ainda mais longe ao proibir o seu comércio (desenvolvido ao longo dos séculos), refere: “(...) A escravatura e o tráfico de escravos são proibidos sob todas as formas (...)” . 



Das Convenções e Protocolos complementares


Outros movimentos têm surgido, que visam complementar os textos fundamentais internacionais acima apresentados, no contexto do Direito Internacional para fazer face ao TSH, a “Convenção sobre a Escravatura” aprovada na sua génese em 1926 e emendada em 1953 em Genebra pela Organização Internacional do Trabalho  com ênfase nos artigos 2º e 3º que obrigam os Estados Contratantes a tomar as medidas necessárias de repressão e impedir o tráfico de pessoas, assim como promover a supressão da escravatura na sua totalidade, duma maneira progressiva e tão depressa quanto possível (art.º 2º, alíneas a) e b)) . 

A Convenção nº 29 define que a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente” (art.º 2, nº 1) e Convenção nº 105, adotada em 1957, que tratou da abolição do trabalho forçado, passando a configurar uma obrigação dos Estados-Membros da OIT.


Com efeito, é de referir, o especial tratamento em matéria de TSH no que respeita a mulheres e crianças. Convencionaram os Estados, multilateralmente, quanto à Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, cujo seu preâmbulo considera “a prostituição e o mal que a acompanha (...) o tráfico de pessoas com vista à prostituição, são incompatíveis com a dignidade e valor da pessoa humana e põem em perigo o bem-estar do indivíduo, da família e da comunidade (...) ficou convencionado no logo no primeiro artigo “punir toda a pessoa que, para satisfazer as paixões de outrem: 1) Alicie, atraia ou desvie com vista à prostituição uma outra pessoa, mesmo com o acordo desta; 2) Explore a prostituição de uma outra pessoa, mesmo com o seu consentimento . 

As crianças representam outro foco de especial atenção por parte da comunidade internacional, este hediondo flagelo levara, assim à criação de um “Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança Relativo à Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil” que mais que considerar, visa a adoção de medidas e ações com o fim de garantir a proteção da criança contra a venda, prostituição infantil e pornografia infantil. Uma realidade que preocupa pela sua tendência crescente do tráfico internacional de crianças e que merece as intervenção do Direito Internacional, com especial atenção ao artigo 2º que estabelece:



“Para os efeitos do presente Protocolo:

a) A venda de crianças designa qualquer acto ou transacção pelo qual uma criança é transferida por qualquer pessoa ou grupo de pessoas para outra pessoa ou grupo contra remuneração ou qualquer outra retribuição;

b) Prostituição infantil designa a utilização de uma criança em actividades sexuais contra remuneração ou qualquer outra retribuição;

c) Pornografia infantil designa qualquer representação, por qualquer meio, de uma criança no desempenho de actividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais.”


Já o artigo 2º impõe aos Estados Partes que as condutas acima descritas sejam tipificadas no Direito Penal – um Diploma claramente de matriz soft law –, visando sempre o respeito pela ordem jurídica interna de cada um dos Estados . 



Criminalidade organizada associada ao tráfico de pessoas


Uma nota ainda, para o TSH no que respeita a mulheres e crianças, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada e Transnacional, concluída em Nova Iorque a 15 de novembro de 2000, sob tema da cooperação jurídica, judiciária e policial (Cooperação judiciária penal), que estabelece definições muito relevantes para o Direito Penal em matéria de crime organizado, nomeadamente:


a) “Grupo criminoso organizado” um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existindo durante um período de tempo e actuando concertadamente com a finalidade de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material;

b) “Crime grave” um acto que constitua uma infracção punível com pena privativa de liberdade não inferior a 4 anos ou com pena superior;

(...)


Este diploma, e a preocupação com a criminalidade organizada, nasce, sobretudo, pelo fluxo migratório crescente tanto no Mediterrâneo como em outros pontos do mundo como o que se assiste na América do Sul e do Centro, proporciona uma movimentação atroz daquelas organizações ilícitas, contra migrantes e refugiados.


Por fim, as 11 Diretrizes ou Princípios recomendados nos termos do Estatuto do Tribunal Penal Internacional  que visam garantir por parte dos Estados uma atitude de prevenção e de proteção às vítimas não só em termos do tráfico de seres humanos em si, mas dos Direitos Humanos em geral.


Da prevenção e assistência


Do relatório que enfatiza a preocupação por parte daquele Tribunal pela vítima de tráfico, destacamos “a prevenção e assistência”, que não deve esta ser detida, acusada ou perseguida judicialmente por força da sua entrada ilegal nos países de trânsito e de destino, “na medida em que tal envolvimento seja consequência direta da sua situação de vítima de tráfico” .


Recomenda os Estados a garantir uma atitude de proteção das vítimas de tráfico “contra novas explorações e malefícios e o seu acesso a cuidados físicos e psicológicos adequados...” sem que haja condicionamento pela disponibilidade da vítima para efetiva colaboração em quaisquer processos judiciais.


O relatório prevê o benefício “de assistência jurídica ou outra ao longo de todos os processos penais, civis ou de outra natureza instaurados contra presumíveis traficantes”. Por conseguinte, assegurar por parte dos Estados a proteção e atribuir autorizações de residência temporárias a vítimas e/ou testemunhas durante o correr dos processos judiciais.


A invocação do superior interesse da criança, atribuindo-lhes a qualidade de vítima de tráfico de pessoas, beneficiando assim, de assistência e proteção adequadas, bem como a dignidade penal em face das suas vulnerabilidades, direitos e necessidades especiais das crianças.


Ponto relevante é o 11º quanto ao regresso seguro ao Estado de origem ou, possibilitar “alternativas legais ao repatriamento caso seja razoável supor que este coloca graves riscos à sua segurança e/ou segurança das suas famílias” por parte do Estado de acolhimento.



As 11 diretrizes recomendadas pelo Tribunal Penal Internacional :


1. A promoção e proteção dos direitos humanos;

2. Identificar as vítimas de tráfico e os traficantes;

3. Pesquisa, análise, avaliação e difusão;

4. Garantir um enquadramento jurídico adequado;

5. Garantia de resposta adequada ao nível da aplicação da lei;

6. Proteção e apoio das vítimas de tráfico;

7. Prevenção do tráfico;

8. Medidas especiais destinadas a proteger e apoiar as crianças vítimas de tráfico;

9. Acesso a vias de recurso;

10. Obrigações do pessoal das forças de manutenção de paz, polícia civil e pessoal humanitário e diplomático;

11. Cooperação e coordenação entre Estados e regiões.


O Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tipifica no estrato de crime contra a Humanidade, a escravidão é “o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças” – artigo 7º, nº 1, alínea c) em conjugação com o número 2 alínea c) que conceitualiza.



A Interpol 


Um papel deveras importante é a destrinça entre o tráfico de seres humanos e o auxílio à imigração ilegal, condutas que se assemelham e, cujo



Instrumentos regionais


Da Europa e da União Europeia


No que respeita ao continente europeu, desde logo, a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais na Europa, assinada em 1950 pelo Conselho da Europa , versa, sobretudo, pelos direitos humanos e na proteção das vítimas definindo o tráfico como uma violação dos direitos humanos e a lesão da dignidade e integridade humana. Não tão só a violação destes direitos, mas o efeito que reflte na destruição de vidas de crianças, mulheres e homens na Europa e no mundo, é o que trata a Convenção do Conselho da Europa relativa á Luta Contra o Tráfico de Seres Humanos, em vigor desde 1 de fevereiro de 2008, que visa a prevenir o tráfico, proteger as vítimas, levar os agentes à justiça, e promover a coordenação de ações nacionais e a cooperação internacional.

No que respeita à proteção das vítimas , um importante contributo, é o que resulta da atribuição de especiais direitos às vítimas do flagelo do TSH, de um modo geral e às crianças em particular.

Nos termos da Convenção a vítima de tráfico dispõe dos seguintes direitos: a ser identificada; a um período de restabelecimento e reflexão; assistência no que respeita a necessidades básicas como: alojamento, cuidados médicos e psicológicos, serviços de tradução, acesso a mercado de trabalho (nos termos da lei); assistência jurídica; autorização de residência; proteção da vida privada e da sua identidade; proteção no decorrer da investigação e no procedimento criminal; indemnização; repatriamento e regresso.

Por seu turno, as crianças, além dos direitos anteriormente referidos, dispõem de direitos especiais, nomeadamente: a um tutor legalmente nomeado, que as represente e atue no seu superior interesse; direito a medidas educativas e assistência que tenham em conta as suas necessidades; o repatriamento terá lugar, após avaliação dos riscos e da segurança tomando em conta o superior interesse da criança.



Do direito da União Europeia


Um considerável conjunto de instrumentos de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos são os disponíveis à União Europeia, desde logo, o Tratado de Lisboa , estabelece a cooperação judiciária em matéria penal, assente no princípio do reconhecimento mútuo de sentenças e decisões judiciais (art.º 82º, nº 1 do TFUE), o estabelecimento de regras mínimas ex vi as Diretivas emanadas pelo Parlamento Europeu e do Conselho, de acordo com as tradições e sistemas jurídicos dos Estados-Membros, harmonizando-as, nomeadamente: a) sobre a admissibilidade dos meios de prova entre os Estados-Membros; b) os direitos individuais em processo criminal; c) os direitos das vítimas da criminalidade; e d) outros elementos específicos do processo penal (...)


A prevenção e combate ao tráfico de seres humanos, numa vertente jurídico-prática na União Europeia, é colocado em prática, não só por medidas de cooperação judiciária em matéria penal (artigo 82º TFUE) e por uma cooperação policial (art.º 87º TFUE) entre os Estados-Membros, como pela criação do Eurojust  com a finalidade de reforçar a luta contra a criminalidade grave (onde se enquadra o TSH)  e do Serviço Europeu de Polícia, a Europol que visa a cooperação policial em matéria de prevenção e combate ao crime organizado, terrorismo e outros tipos de crime graves.


A Carta Fundamental dos Direitos Fundamentais da União Europeia assente na DUDH, fundamenta a criação dos instrumentos e mecanismos acima referidos, colocando-se numa posição cimeira, de acordo com a sua natureza supranacional, proíbe desde logo a escravidão e o trabalho forçado (art.º 5º) e é deste preceito que surge toda a panóplia de instrumentos repressores e dissuasores do TSH. Na sua esteira, a Diretiva 2011/36/EU que reforça a tipificação como crime grave o tráfico de seres humanos, mas não olvidamos o importante contributo da Declaração do Porto  em 2007, aquando da presidência portuguesa da União Europeia, visando os Estados-Membros a investir na investigação e repressão do TSH.



EUROPOL 





Instrumentos nacionais


Da ordem jurídica portuguesa e da política nacional


A Constituição da República Portuguesa  invoca, logo no seu artigo 1º o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito fundamental à vida (art.º 25º), o direito à liberdade preceituado no artigo 27º da nossa Lei Fundamental e, podemos invocar a igualdade no que tange à privação de qualquer direito por outrem (art.º 13º, nº 2). Assim, vislumbramos o quadro de bens jurídicos que o tráfico de pessoas, a escravatura e o trabalho forçado lesam na sociedade, mas sobretudo nas vítimas deste flagelo.

Com efeito, o elevado grau de gravidade que o crime de TSH representa, confere um caráter excecional, enquadrando-o, assim, no rol de crimes de gravidade especialmente violenta, nos termos do artigo 34º, nº 3 da CRP (procedimento próprio do processo penal em matéria de medidas de cautelares de polícia e na obtenção de prova, que abordaremos de forma geral nos próximos pontos).


Por força da Constituição da República Portuguesa, o crime de tráfico de seres humanos encontra-se tipificado no Livro II, Título I, artigo 160º do Código Penal nos seguintes termos:


1 – Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas:

a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave;

b) Através de ardil ou manobra fraudulenta;

c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica de trabalho ou familiar;

d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima ou;

e) Mediante a obtenção sem consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima;

é punido com pena de prisão de três a dez anos.

2 – A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, (...) proceder ao alojamento ou acolhimento de menor (...) a adoção ou a exploração de outras atividades criminosas.

(...)

4 – As penas previstas nos números anteriores são agravadas de um terço, nos seus limites e mínimo e máximo, se a conduta neles referida:

a) Tiver colocado em perigo a vida da vítima;

b) Tiver sido cometida com especial violência ou tenha causado à vítima danos particularmente graves;

c) Tiver sido cometida por um funcionário no exercício das suas funções;

d) Tiver sido cometida no quadro de uma associação criminosa; ou

e) Tiver como resultado o suicídio da vítima.

5 – Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adoção, é punido com pena de um a cinco anos.

6 – Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.os 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

7 – Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.os 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

8 – O consentimento da vítima dos crimes previstos nos números anteriores não exclui em caso algum a ilicitude do facto.



A lei processual penal tem um papel muito importante a jusante da problemática do crime especialmente violento atribuído pela própria Constituição (como verificamos acima no seu artigo 34º, nº 3)  como é o do tráfico de pessoas, conferindo uma excecionalidade na ação desenvolvida por quem atua no plano judicial e judiciário.

O Código Processo Penal , em matéria de meios de obtenção de prova favorece ações de revistas e buscas levadas a cabo pelos órgão de polícia criminal , sem a necessidade de autorização prévia “por despacho da autoridade judiciária competente... ” nos termos do artigo 174º, nº 5, alínea a), conjugada com o nº 3 do mesmo artigo e com a exceção prevista no artigo 177º, nº 2, al. a) que permite a realização de busca domiciliária entre as 21 e as 7 horas. Situação idêntica é a que ocorre em matéria de medidas cautelares de polícia nos termos do artigo 251º da Lei Processual Penal.


Não nos apartamos dos demais instrumentos a montante do direito penal e processual penal. Até que estes corram, existe todo um conjunto de ações e operações a desenvolver em matéria de prevenção e combate ao TSH através da implementação das políticas nacionais que visam eliminar o tráfico de pessoas. Sendo esta uma prioridade para o Estado português, entre 2007 e 2001, têm sido implementados quatro planos de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos direcionados na estreita colaboração entre as demais entidades públicas e organizações da sociedade civil. Enquadrados nos compromissos assumidos por Portugal nos diversos institutos internacionais (tanto do Direito Internacional Público, como pelo Direito da União Europeia e da Comunidade dos países de Língua Portuguesa), que incorpora recomendações pertinentes para fazer face ao TSH.


O I Plano Nacional Contra o Tráfico de Seres Humanos (I PNCTSH)  , com destaque para a Lei nº 23/2007, de 4 de julho respeitante aos estrangeiros em território nacional .

O II PNCTSH  implementado entre 2011 e 2013, comporta 45 medidas  com base em quatro áreas estratégicas:


i) Conhecer, sensibilizar e prevenir;

ii) Educar, e formar;

iii) Proteger e assistir; e

iv) Investigar criminalmente e Cooperar.


III Plano Nacional de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos  (num modelo mais evoluído ao atribuir uma dupla função de prevenção e de combate), visa reforçar os mecanismos de referenciação e proteção das vítimas; aprofundar a articulação e cooperação entre as entidades públicas e as organizações não governamentais (ONG’s), assim como a adaptação da estratégia e resposta concertada a nível estadual face às novas formas de tráfico.

Este plano obedece a cinco áreas:


i) Prevenir, sensibilizar, conhecer e investigar;

ii) Educar, formar e qualificar;

iii) Proteger, intervir, e capacitar,

iv) Investigar criminalmente; e 

v) Cooperar.


IV PAPCTSH  para os anos 2018-2021 que incide que dirige o seu foco em assegurar às vítimas um melhor acesso aos seus direitos (e informação sobre esses direitos), qualificação da intervenção e promove a luta contra o fenómeno do crime organizado, por exemplo, no desmantelamento do modelo de negócio e, por conseguinte, da cadeia de tráfico.


É à Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (conhecido por CIG), a entidade coordenadora, coadjuvada por uma Comissão Técnica de Acompanhamento, composta pelas diversas áreas afetas ao tráfico de seres humanos, entre as quais :


- Um membro do Governo responsável pela área da cidadania e igualdade;

- Presidente do CIG;

- Representante da Polícia de Segurança Pública;

- Representante da Guarda Nacional Republicana;

- Representante da Polícia Marítima; etc.


À data de elaboração deste artigo, encontrava-se terminado o período de consulta pública (dia 4 de dezembro de 2023), o V Plano de Ação para a Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos para 2024-2027, que mantém três objetivos estratégicos:


1. Consolidar e reforçar o conhecimento e sensibilizar sobre a temática do tráfico de pessoas, através:

a. Da garantia de informação de qualidade sobre TSH, desagregada por sexo, incluindo dados estatísticos.

b. Melhorar o sistema de reporte de vítimas de TSH, consolidando as vítimas que são registadas nos diferentes sistemas intervenientes.

c. Aprofundar a prevenção primária como prioridade fundamental nos eixos da informação e sensibilização sobre a temática do TSH para públicos diversos e de disseminação ampla.

d. Promover e reforçar a construção de conhecimento sobre as diferentes realidades do tráfico de pessoas existentes em Portugal, permitindo a 

2. Assegurar às vítimas um acesso melhor aos seus direitos (e informação sobre os mesmos), consolidar, reforçar, e qualificar a intervenção;

a. Reforço das medidas de proteção e de apoio às vítimas;

b. Adoção de abordagem à vítima de TSH no plano da intervenção num prisma de protecionismo e apoio.

c. Consolidação de práticas de intervenção às vítimas, adotando uma maior especialização para fazer face aos diversos tipos de tráfico.

d. Capacitação os profissionais da Administração Pública através de formação inicial e contínua.

e. Promover maior capacitação das vítimas.

f. Consolidação e reforço da intervenção no âmbito da Rede de Apoio e Proteção à Vítima de Tráfico (RAPVT) .

g. Aprofundar a territorialização das respostas já existentes, com destaque para as EME’s e as CAP’s .


3. Reforça o combate ao crime organizado, designadamente o desmantelamento do modelo de negócio e, por conseguinte, a própria cadeia de tráfico.

a. Reforçar a cooperação entre as várias entidades envolvidas interna e externamente.

b. Promover a prevenção e o combate ao TSH por parte dos operadores económicos ao longo de toda a cadeia de valor e fornecimento, e ao nível da contratação pública.

c. Desenvolvimento de mais iniciativas no domínio público e privado com empresas em setores e ambientes de alto de risco, fundadas em lógicas regionais e locais.



A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, abreviadamente designada por CIG, consiste num serviço central da Administração direta do Estado dotado de autonomia administrativa  que presta um contributo fundamental na prevenção e combate ao tráfico de seres humanos que coordena toda a Estratégia Nacional acima mencionada e descrita . Com papel preponderante na prossecução do princípio igualdade e da dignidade humana.


O Observatório do Tráfico de Seres Humanos, tutelado pelo ministério da Administração Interna, é outro dos mecanismos essenciais nas políticas públicas através da “produção, recolha, tratamento e difusão de informação de conhecimento respeitante ao fenómeno do tráfico de pessoas”. Processos essenciais para apoiar a tomada de decisão política nas áreas desta matriz.


Mais acrescentaremos com o próximo relatório.





Comentários

Mensagens populares deste blogue

SERVIR A PÁTRIA NAS FORÇAS ARMADAS - Defesa da Pátria

Das Imutabilidades das Convenções Antenupciais

Direito das Sociedades Comerciais - Órgãos de Fiscalização